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terça-feira, 19 de março de 2019

FANTASMAS RELIGIOSOS

Não me recordo de nenhum momento na minha vida em que eu não soubesse que era homossexual. É verdade que tive, sei lá bem porque razão, uma namorada quando andava na escola primária, mas a coisa durou poucos dias. Uns anos mais tarde, quando fui pela primeira vez ao Brick (agora conhecido como Construction) e não me identifiquei com nenhum dos presentes, questionei-me durante umas horas sobre a minha sexualidade, mas não havia qualquer dúvida. Era por membros do meu sexo que sempre me senti atraído.

Olhando para trás, percebo perfeitamente que poderia ser um gay completamente desajustado e cheio de problemas de consciência. Mas por razões que desconheço, consegui dar a volta por cima e ser quem sou hoje.

Quando tinha cerca de 4 anos de idade, os meus pais tornaram-se Testemunhas de Jeová, e permaneceram nessa religião durante mais de 10 anos, sendo eu obrigado a segui-los. Lembro-me de no início essa religião ser proibida (situação que só se alterou após a revolução do 25 de Abril) e as reuniões serem feitas “às escondidas” em casa dos diversos membros. Mas o que mais me recordo desses primeiros anos, era o facto de não poder festejar o Natal, nem fazer festas de aniversário. 

Durante todos os anos em que fiz parte dessa religião, foi-me sempre incutido o sentimento do pecado e o receio do castigo de Deus se eu pecasse. Para uma criança que começa a despertar para o sexo, a ideia de pecado pode ser uma coisa aterradora, mas também muito excitante. Claro que temia sempre o possível castigo Divino, mas isso não impedia de, ainda na escola primária, entrar nos deliciosos jogos do “mostra-me a tua que eu mostro-te a minha”. Ou melhor ainda, “se mexeres na minha eu mexo na tua”.

Acho que posso afirmar que era um rebelde bem comportado, que tinha descoberto que sexo com outros meninos, apesar de ser um pecado mortal, era algo demasiado excitante para desperdiçar. O que eu não sabia então, é que a minha paixão pelo cinema no geral e pelo musical em particular, bem como o fascínio que tinha por Barbra Streisand e Julie Andrews, eram fortes indícios da minha emergente homossexualidade.

Voltando à religião, conforme ia crescendo tinha cada vez menos paciência para as aborrecidas reuniões e senti-me cada vez mais revoltado pelo facto de quase tudo ser pecado. Foi então que aconteceu algo que viria a ajudar-me a mudar os meus sentimentos sobre tudo isto. Como não tinha paciência para os longos discursos com que éramos prendados durante as reuniões, entretinha-me a ler a Bíblia e, aos poucos e poucos, fui-me apercebendo que, como qualquer outro livro, a mesma estava aberta a várias interpretações. Assim comecei a pôr em causa, não a existência de Deus, mas a  religião em si, ao mesmo tempo que continuava com as minhas brincadeiras sexuais com outros rapazes. Uma coisa eu sabia, não era o único gay na zona.

Acredito que, como eu, houvessem outros homossexuais entre os membros da religião, mas nunca abordei nenhum deles, nem tive relações com eles. Para mim, sexo e religião não se misturavam. O melhor era manter essa minha faceta afastada dos outros membros.

Por razões que nada tiveram a ver comigo, os meus pais afastaram-se da religião quando eu tinha 14 anos e no dia do meu 15º aniversário festejei a minha primeira festa de anos. Sentia-me liberto de toda aquela opressão religiosa, mas no fundo do meu consciente uma vozinha continuava a dizer-me que ser homossexual era um pecado mortal, condenado pela Bíblia.

A fim de enfrentar os meus fantasmas, alimentados por anos de religião, decidi voltar às Testemunhas de Jeová uns anos mais tarde. Desta vez estava preparado; até tinha encontrado uma relação gay na Bíblia, entre o rei David e seu amigo Jonatã: “E sucedeu que, assim que acabou de falar a Saul, a própria alma de Jonatã se ligou à alma de David, e Jonatã começou a amá-lo como a sua própria alma.” (1º Samuel 18.1) – “Estou aflito por ti, meu irmão Jonatã, tu me eras muito agradável. Teu amor a mim era mais maravilhoso do que o amor das mulheres.” (2º Samuel 1.26). 
Não queria um estudo bíblico de como o mundo tinha começado e como ia ser bom sobreviver ao Armagedão (o fim da nossa civilização às mãos de Deus) e viver para sempre num novo paraíso. Tinha diversas perguntas e necessitava de resposta às mesmas. Exigia que essas respostas me fossem dadas por textos na Bíblia e não por livros escritos por homens que a tinham interpretado ao seu modo, tendo em conta os seus interesses. Tal como calculava, muitas das minhas perguntas não tinham resposta e abandonei uma vez mais a religião, mas já sem fantasmas.

Uma coisa aprendi lá. A fim de sermos aceites por Deus e pelos outros, temos primeiro que nos aceitarmos a nós próprios. Só podemos estar bem com Deus se estivermos bem connosco. Só assim poderemos encontrar a felicidade e viver uma vida sem receio.

Curiosamente, nunca deixei de acreditar em Deus como uma entidade sobrenatural e, ainda hoje, começo sempre o dia com uma oração. Velhos hábitos são difíceis de perder e confesso que ainda encontro conforto nestas minhas orações diárias.

por Jorge Tomé Santos


7 comentários:

  1. Olá Jorge. Gostei muito deste teu texto. Nunca tinha lido nada parecido sobre homossexualidade e a religião das Testemunhas de Jeová. Boa sorte para a nova vida do blog.

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  2. Obrigado João pelas tuas palavras e incentivo.

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  3. As Testemunhas de Jeová não são uma religião. São um movimento religioso cristão, mas não uma religião. O cristianismo é que uma religião. Gostei do texto!

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